DIÁRIO DE UMA GUERRA PASSADA
Bicho, que ressaca. Estrondosa. A noite de ontem começou tarde, como sempre. Tarde para os outros, não para a nossa turma. Onze, onze e meia e partimos pra rua. Peguei Robertão em casa e nos mandamos para o Queen Victoria Pub, ali em Bento Ferreira. Liguei e marquei tudo com o resto da rapaziada. Se der merda, só torcendo por algum encontro casual ou sei lá. Como achar alguém, uma vez na rua, por telefone? Ligando para um orelhão acertado? Um dia teremos, todos, walkie talkies para nos comunicarmos por aí.
Como ontem era sexta, a garganta da turma estava mais seca do que nunca. Uma semana inteira de UFES e trampo nas costas e já viu. O triste foi ter que encarar ainda a pelada de futebol na manhã de hoje (lá no Álvares Cabral). Como não falto, cheguei em casa, lavei o rosto, meti o uniforme e joguei como foi possível. E estou especialmente cansado este mês, acumulando rocks de Vitória e o superrockão feito lá no Pico da Bandeira, Caparaó, na semana santa. E, como muitos e muitos outros, acreditei no caô do cometa, aquela conversa de que lá nas montanhas o enxergaríamos melhor. Putz. Mas valeu a viagem, a maconha no papel e no cachimbo, o conhaque pra abater o frio, os banhos na cachoeira, as paqueras e até as cagadas no mato. Fodaço.
Só uma pausa: por falar em UFES, que desgraça é aquela de Turma do Balão Mágico? Uns babacas do curso de Comunicação Social que se dizem alternativos, feios pra caralho, sujos e bundões. E que não produzem, trabalham, porra nenhuma. Acho que devemos (nós, da Educação Física) dar umas pancadas nesses manés. E outra aporrinhação acadêmica é o trabalho que tenho para digitar; a entrega marcada para a terça-feira e a minha máquina de escrever deu pau, travando sempre. A solução é mandar tudo manuscrito.
Bem, chegamos no pub com facilidade, pelo andar das horas e pelo fato de nossa cidade possuir poucos sinais. Ah, claro, também ando com o pé pesado no passat do velho. O mesmo que porrei duas vezes no últimos meses. Uma delas voltando da Blow up, em Vila Velha, pela rodovia Carlos Lindemberg. Todos os caras dormindo no carro e eu, chapadérrimo, guiando sei lá como. Caralho, uma outra obra ligando as duas cidades ajudaria bastante, porra! Por vezes penso que essa maldita terceira ponte jamais sairá das cabeças de nossos engenheiros. O negócio é dar mais chances aos rocks na Smoke Island.
Bar cheio, todas as mesas ocupadas e lugares somente no enorme balcão. Beleza, podíamos aguardar o resto do pessoal bebericando uma boa caneca (500 ml, por favor) de chopp. Logo chegariam Magrão, Lourival, Jojó, Arthur, Adriano e Gordo, estes dois últimos moradores da maravilhosa república mineira em que nos jogamos vez ou outra, localizada na Vila Miséria, Jardim da Penha, assim batizada por conta dos apês de baixo custo mantidos pelos estudantes da Federal. Lembram-se de Roque Santeiro, exibida recentemente? Pois é.
Galera reunida, mesa disponível - e iniciamos o rápido processo de expansão das consciências. Sou dos poucos da patota a fumar, e o ambiente pubista pedia um bom cigarrinho. Será um maço até o final da noite. Tenho que dar um jeito nessa merda. Meus pulmões, um dia, pedirão água. E pensar que no ano passado enfrentei um serviço militar que exigia pesadas corridas diárias. Morro do Moreno acima, sol na lata e tenente aporrinhando. Passou, passou. E valeu paca.
E não só o exército marcou o ano morto. A antológica ida ao Rio de Janeiro, no início do verão, jogou-me nos braços do maior festival por aqui já visto. Fui com o Alexandre, brother meu lá do colégio Promove, e ficamos na casa de minha avó, na Ilha do Governador. A aventura começava no ônibus, em uma linha especialmente criada para fazer a ligação Ilha/Barra da Tijuca. Uma hora e meia sacolejando apertado, bebendo vinho e batucando na lataria. E ainda pegávamos um outro ônibus para estarmos no local de partida. Olha, impressionava a visão da Cidade do Rock. Uma imensa área abandonada, perto do Riocentro, bancada pela prefeitura e transformada pelo visionário Roberto Medina. Eram 85.000 metros (onze campos do Maracanã, meu camarada) quadrados somente de área verde, aquela que abrigou por apenas dois dias grande parte da multidão. Dois dias? Sim, já que as chuvas mudaram rapidamente a paisagem. O verdão virou uma mistura punk/metal de lama e urina, com um cheiro que jamais esquecerei. A festa, no entanto, não era interrompida, e por volta das onze horas da manhã desembarcávamos para a maratona. Das 11 às 18, a preparação (e tome Malt 90, yeah!). Desta hora em diante, o caos. Maiden, Queen, AC/DC, Ozzy (gordo escroto enganador do caralho, com uma puta banda), Whitesnake, Scorpions, Nina Hagen, Rod Stewart, Paralamas, Alceu, Blitz e companhia sacudiram as bagaças. Cinco dias, cinco dias de podreira encantadora. E tudo apenas um ano e meio depois de minha estréia em grandes shows, justamente com o Kiss (Maraca, julho de 83). Amadureci com rapidez neste espaço de tempo. Vejam só, um roqueiro “veterano” com seus 18 anos, eheheheheh...
E, desta passagem em diante, as paredes de meu quarto escureceram de vez – cortesia da absurda quantidade de posters, sobretudo do Iron. Meus agradecimentos às revista Somtrês e Metal. E parece que aquela nova publicação, a Bizz, veio pra ficar. Não acredito muito, porém: as edições voltadas para a música roqueira, aqui no Brasil, possuem vida curta.
Era o meio da madrugada e já estávamos atingindo o quadragésimo chopp, mandando para dentro aditivos mais (uísque, conhaque, caipirinha etc). Sem saber explicar como, a nossa mesa recebia três garotas, conhecidas ali mesmo. A república de Jardim da Penha prometia fervura. Acordei por lá na semana passada sobre um lençol, no chão, com mais dois amigos moradores e uma menina. Não faço idéia do acontecido. Matadouro dos bons, gente.
São sete da noite deste sábado, e pelo tamanho do estrago sinto que a nossa saída noturna irá pro saco. O pior é ter que aturar a programação das nossas emissoras, com seus Gugus (“Viva a Noite”), Goularts de Andrade (“Comando da Madrugada”) e demais passatempos estranhos. Olha, daria uma boa grana por um satélite que me mandasse programas de qualidade, algo como as televisões por assinatura dos EUA. Chegarão aqui algum dia? Uma fita de vídeo salvará a noite, mais uma vez. Mesmo que seja uma das inúmeras piratas que encontramos na locadora.
Claro, claro, tenho cá os meus discões, vinis de longas batalhas, mais as dezenas de fitinhas gravadas de amigos e rádios (com o RIR I, as estações preocuparam-se em criar programações voltadas para o rock pesado; aleluia, aleluia!). Pena não encontrarmos muita coisa das terras estrangeiras nas nossas queridas Golias e Messias. Não reclamo, no entanto: são os locais que permitiram a coleção que possuo. Acho que na segunda vou dar um pulo no centro, rodar a Mesbla, as Americanas e os dois points roqueiros. Uma boa garimpada é sempre válida. Se eu pudesse achar novas (?!) músicas sem sair de casa... Pensando bem, a graça não seria a mesma, não?
Voltando à noite de terror e pânico, pouco posso falar das três e meia pra frente. Amnésia alcoólica, manja? Imagine, ainda dirigi sem acidentes até a minha casa. Sei apenas que passamos pelo Dionicão, em função da existência de cascos de refrigerante e vidros de maionese nos tapetes e bancos do carro. Encontrados pelos meus pais, fique claro. Vou dar uma telefonada pra me inteirar do resto da noite. E amanhã devo ir ao cinema. Me amarro no domingão do centro, as ruas vazias, o fliperama antes do filme e tal. Por sinal, ouço muita gente reclamar por ter que ir ao centrão pra pegar o seu cineminha. Como adoro o ambiente, não estou nem aí. O que querem? Cinema em shopping? Por mim, foda-se. Sinto falta, no entanto, de um bom local pra lanchar. Deus, por que não temos por aqui um Bob’s, um Mac (argh!), qualquer coisa? Falo daquela saída clássica: jogos eletrônicos, telão e rango na rua. Paciência.
As aulas na faculdade estão apenas começando. Tenho todo o ano pela frente. Um ano que começa agora, realmente. Eleições (a minha primeira experiência com a parada, agora com o voto direto), Copa do Mundo, mais shows, putarias, festas no campus e mais, muito mais. E meu pai e minha mãe decidiram comprar um apartamento em Guarapari, já que sempre buscamos a cidade no verão e em outras situações excepcionais.
Acho que muita coisa maluca ainda vem por aí. Divirta-se, companheiro.
OBS: ah, já me esquecia de um lance, porra. Soube que uma galera está migrando para um novo ponto de encontro boêmio, ali mesmo em Jardim da Penha. Falam em rua da Lama ou coisa assim. Parece que o lugar tem pouca estrutura, rua de terra batida, lamaçal quando chove (é, deve ser rua da Lama, mesmo). Mais um contraponto ao local dos boys, que recebeu há pouco o nome de bobódromo. Engraçado, não? Bom, qualquer rock que pinte merece a minha atenção. Vou checar qual é a parada e depois mando as minhas impressões. Até.
E domingo que vem tem dia das mães. O presente dela já está na mão. E o churrascão aqui em casa já está armado. Bom demais.
Caio, maio de 1986.
LACAIO, O CAVALO LOUCO