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Os anos loucos de Tim Maia
Toninho Vaz
15.12.2004 | Ele vive na Alemanha (Hamburgo) desde 1987, mas, na realidade, Dom Pi nasceu em Barra Mansa, onde começou – por influência do avô Francisco – tocando acordeom e piano, aos 11 anos. A primeira banda, ainda com o pessoal do bairro, foi a Blue Jet, antes de começar a tocar profissionalmente, com Sebastião Rodrigues Maia, o Tim. “Eu faço parte da formação original da Vitória-Régia, com Paulinho Guitarra, Robson Urubu, Jorginho, Bolacha e Lúcio do Trombone. Quando entrei para o grupo, em 1973, na condição de pianista, não fazia idéia do rabo de foguete em que estava me metendo”, relembra, com um largo sorriso, Reginaldo Dom Pedro Francisco (cujo Pi vem de piano).
Como destaca Dom Pi no prefácio do livro de memórias que está preparando, “a vida nesses dez anos de convivência diária parecia um verdadeiro filme, com cenas dramáticas, tristes e alegres. Todos os dias aconteciam coisas que hoje merecem ser registradas.” O texto é crivado de tiradas espertas, que ele começou a escrever, em centenas de páginas de um caderno escolar, logo após a morte do amigo, em 1998: “Eu soube da morte do Maia na Europa. Foi um choque. Logo depois, pensando na nossa história, comecei a coletar estas memórias que pretendo, agora, tornar públicas.”
São breves registros de fatos marcantes e saborosos, com a marca que caracteriza o folclore de Tim Maia e sua banda. Nas entrelinhas percebe-se a admiração de Dom Pi pelo amigo de todas as horas, com quem dividia um apartamento na rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana: “O Tim era um sujeito generoso, quase sempre acusado de temperamental, mas, na verdade, era um ingênuo.”
A convivência incluía a namorada de Maia, uma moça chamada Janete de Paula, para quem ele escreveu várias músicas de sucesso, como “Você” e “Réu Confesso”. Com todas as namoradas, lembra Dom Pi, Tim tentava colocar em prática uma filosofia de vida que implicava ser aceito com vários “amores” ao mesmo tempo, numa espécie de bigamia consentida. Dizendo-se réu confesso, ele pedia que elas “tivessem espírito elevado” e não promovessem cenas de ciúme. Dom Pi recorda:“Com algumas moças, ele conseguiu total cumplicidade. Mas era a Janete, que morreu anos depois em Paris, o seu grande amor.”
De passagem pelo Brasil, onde trabalhou em turnê com Elza Soares, Dom Pi deixou os originais do livro com o amigo Renato Piau – guitarrista de Luis Melodia e antigo integrante da Vitória Régia – para serem submetidos a uma revisão e, posteriormente, oferecidos a alguma editora interessada em publicá-los. NoMínimo teve acesso aos originais e antecipa quatro boas histórias aos leitores. Confira, a seguir.
VERÃO CARIOCA - 1976
Eu lembro bem. O Tim tinha assinado contrato para gravar um LP pela Polygram. Era um bom sinal. As coisas estavam começando a andar e, como sempre, num ritmo alucinante. O mais incrível é que, quando a coisa andava para trás, era também num ritmo de Fórmula 1: não havia meio-termo. Ou tinha-se muito ou não se tinha nada. Agora, pelo menos, o Maia ia botar a mão numa bolada forte. Fim da miséria! Pelo menos era o que o astral prometia.
Naqueles dias, a situação estava “maomé”, como a gente costumava dizer, ou seja, mais ou menos. A banda vinha fazendo alguns shows muito loucos, com direito a músico pulando o muro para fugir do local e tudo mais. Em função das experiências anteriores com empresários safados - que mandavam cheques borrachudos, voador ou pombo-correio, como eram conhecidos os cheques sem fundos -, o Tim só entrava no palco com a grana na mão. Caso contrário, não tinha jogo.
Por isso criamos no grupo um truque de palavras que apenas nós conhecíamos, ou seja, criamos um código secreto. A palavra chave – a senha – era “estratégica”. Era usada quando o Tim já estava no local do show e a gente percebia que não ia pintar a grana. Ele dizia pro Paulinho Guitar, que passava a mensagem para o resto da banda: “Estratégica”. O Tim aproveitava a deixa e dizia ao empresário que precisava ir até o carro, onde tinha esquecido alguma coisa... Todos saíamos discretamente e a fuga acontecia em segundos. É claro que nesta noite não haveria show. Destes episódios surgiria a fama de doidão do Tim, de músico que não atendia os compromissos. Mas a verdade é essa... Tal responsabilidade deve ser dividida também com os empresários inescrupulosos.
TENSÃO EM UBERLÂNDIA
O festival era pelo aniversário da cidade. Estavam programados três dias de shows de rock numa espécie de Woodstock mineiro, com muita loucura, drogas e som pesado. O Maia, que estava “estourando” no Brasil, foi programado para ser o último, encerrando a festa em grande estilo.
Bem, logo no primeiro dia, houve evasão de renda da bilheteria e os artistas que se apresentaram antes do Maia tiveram sérias dificuldades para receber seus cachês. Eles tinham seus empresários no local, o que, em tese, facilitava as coisas. Nesses dias, o Maia havia brigado outra vez com a Janete e tava no hotel derrubando garrafas e mais garrafas de malte escocês – e não estava nem aí para nada. Mas, na hora marcada, lá estava o Maia no estádio lotado, levando a platéia ao delírio. Ele cantou legal, encerrando a festa com chave-de-ouro. Uma pessoa tinha sido encarregada de receber o cachê com o empresário. Era um dos organizadores do evento, que ficou mais próximo de nós.
No final, ele chegou para o Maia e disse que o pagamento seria feito com um cheque, que logo pensamos: borrachudo, é claro! O Tim ainda tentou argumentar, mas não havia jeito... O detalhe é que todos os outros músicos haviam recebido em dinheiro vivo.
Bem, depois do concerto foi oferecido um jantar numa discoteca da cidade aos artistas e músicos. Nessa época, havia sido lançado um carro de luxo, o Dodge Dart, carro caríssimo. O empresário tinha um amarelo, zero quilômetro. O Tim gostou do carro, inclusive foi dirigindo do hotel até a discoteca. Durante a festa alguém teve a idéia: se no dia seguinte teríamos que estar em São Paulo, para uma gravação em televisão, por que não seqüestrar o Dodge até o cheque ser compensado na segunda-feira?
Ótima idéia. Um dos músicos pediu a chave do carro para levar o Maia pro hotel e... voltar logo. O cara não desconfiou de nada e, todo sorridente, entregou as chaves. Foi um tchau! No dia seguinte, estávamos hospedados em outro hotel, em Sampa. Na segunda-feira, quando foram compensar o cheque, ficou confirmada a qualidade de borrachudo. O Maia, que tinha de estar de volta ao Rio em dois dias, se perguntou: o que fazer com o carro? Ele tinha um Alfa-Romeo de luxo e não iria precisar de mais um. Então, ele viajou e o Dodge ficou lá, no estacionamento do hotel. Como o veículo nunca foi reclamado pelo proprietário, o carro foi ficando, ficando... até que, um dia, virou propriedade do hotel, tendo inclusive recebido um logotipo da empresa: Hotel Rosas.
NO BAR BICO
Era um programa rotineiro. A gente costumava passar no bar Bico, no Posto 6, para uma cerveja em pé, no balcão, quase sempre na madrugada, depois de ensaios ou de algum show. Era a região da Galeria Alasca e a movimentação por ali era garantida. Como andávamos em dois carros, o problema maior era o estacionamento. O Tim, que já conhecia o macete, esticava logo uma nota de 10 para o PM de plantão e tudo se resolvia muito rápido. O PM até saía de perto para todo mundo ficar à vontade.
Certo dia, depois de um ensaio exaustivo, remexendo nos bolsos, descobrimos que não havia dinheiro nem para uma cerveja. Foi um desânimo. Apesar disso, o Tim falou: “Toca pro Bar Bico que eu vou tomar uma grana do PM.”
A história poderia não acabar bem, mas, mesmo assim, quando chegamos, o Tim encostou no PM e pediu uma nota de 10 emprestada, algo que pudesse pagar um ou dois hambúrgueres e várias cervejas (essa era a vantagem do bar Bico, cerveja no balcão). O PM reagiu imediatamente: “O que é isso, rapaix? É o contrário. Tu é que vais me dar dinheiro pra deixar os carros estacionados desta maneira... Pode passar os deiz.”
O Tim insistiu que estávamos sem um puto e que, dessa vez, o PM fosse camarada e deixasse pelo menos 10 em sua mão. Era o mínimo que ele podia fazer em retribuição a tantas gorjetas recebidas. Foi com um ar de desconsolo que, após uma inspirada argumentação do Maia, o PM garantiu a rodada daquela noite.
SALVADOR, 1972
Foi um sufoco. Neste ponto, vamos revelar as dificuldades exclusivas da banda Vitória Régia, que pagava o pato por chegar sempre na frente aos locais dos shows. Como aconteceu em Salvador. O Maia tinha assinado contrato para se apresentar durante três dias no Teatro Castro Alves, em pleno verão. A Bahia estava em festa, tudo certo, tudo em cima. A banda chegou um dia antes, pois o Tim estava agendado para fazer um programa de televisão no Rio – e não podia estar no mesmo vôo. Na época, não havia vôos noturnos e o último avião decolava às 16 horas, chegando a Salvador às 20 horas.
Ficou combinado que no dia seguinte à nossa chegada, ligaríamos para informar ao Maia sobre o equipamento de som disponível e outros detalhes. Neste caso, já havíamos recebido 50% do total do cachê. A banda estava hospedada num hotel 5 estrelas – e Salvador estava explodindo de vibração. Ligamos na manhã do dia seguinte, tipo 9 horas, e o Maia ainda não tinha ido dormido. Passara a noite “tirando onda”, mas avisou que não nos preocupássemos porque ele pegaria o avião do meio-dia. Disse que aproveitaria para dormir na viagem e ainda sugeriu que fôssemos à praia ou, se alguém quisesse, “pode ir passar o som no teatro”. E desligou.
A banda foi para a rua, passear, aproveitando que o som já estava testado e aprovado. Quando voltamos ao hotel, às 15 horas, fomos informados na recepção que o senhor Tim Maia havia ligado uma hora antes. Algo não estava batendo, pois àquela hora ele deveria estar dormindo nas alturas, em pleno vôo. O Paulinho pediu uma ligação na hora e ficou pálido: o Maia ainda estava em casa, tomando malte escocês. E já não conseguia falar, de tão rouco. Mas nos prometeu que tomaria o último avião do dia, às 16 horas.
O empresário, que já estava se preparando para buscar o Tim no aeroporto, ficou nervoso ao saber que o mesmo ainda estava no Rio de Janeiro. A gente não podia fazer nada para acalmar o cara. Afinal de contas, o show estava marcado para as 21 horas e o avião deveria, na melhor das hipóteses, chegar às 20; quer dizer, mesmo com Dom Maia chegando naquele vôo, o show sofreria um atraso.
Estava nascendo um cordão de tensão nervosa entre a banda e o empresário. Ficamos sabendo que o evento inteiro estava sendo custeado por um “coronel” do cacau, louco pelo Tim Maia. O tal coronel, que tinha um grande bigode, foi informado dos acontecimentos e ficou uma fera. Queria dar tiro e tudo. Mas nem tudo estava perdido ainda. Às 18 horas em ponto, estávamos todos no camarim do teatro, como havia sido combinado. Às 18h30, a fila das bilheterias estava enorme, fazendo com que a organização abrisse os portões mais cedo, para evitar tumulto. Às 19h30, o teatro estava totalmente lotado. Tudo rigorosamente em cima, lindo! Às 20 horas, com todos na maior expectativa, o empresário ligou do aeroporto, desesperado e aos prantos: “O Tim não chegou no último vôo. E agora, mermão?”
Ali mesmo, do camarim (de onde podíamos ouvir a platéia batendo palmas, em ritmo de espera) ligamos para o Maia, pois podia ter acontecido algo grave, um acidente, sei lá! Alguém atendeu ainda dormindo, era a Janete, irritada:“Alôo. Quem é, porra!? Caralho! O Tim está dormindo!” E crash... bateu o telefone na cara do Paulinho. E tirou o fone do gancho. O clima no camarim, que já era tenso, agora explodia em gritos de indignação e ameaças de morte. No meio daquela tensão, entra o coronel aos gritos: “Eu vou matá aquele sacana!... Ói, já dei ordem pra polícia não deixá vocês sair do hotel. Nóis vamo lá agora explicar que o Tim ficou doente. Essa é a chance que eu vou dar pr’aquele cabra da peste. Vamos dizer que ele vai fazer duas apresentações amanhã, para compensar. Se aquele sacana não vier, vou mandá um cabra pro Rio pá acabá com a raça dele.” E saiu batendo a porta do camarim.
Como conseqüência, naquela noite, ficamos reféns no hotel, com dois seguranças na porta. No dia seguinte, quando ligamos para o Tim, ele quase morreu de rir no telefone, afirmando que estava tudo bem, que já tinha conversado com o coronel, e tal e coisa. “Podem relaxar. Recomendo um mergulho no mar.” Para encurtar a história, o Tim, finalmente, desembarcou no dia seguinte em Salvador, sóbrio. Os shows foram realizados e o coronel ainda tirou fotos no camarim, abraçado com seu ídolo.